domingo, abril 03, 2016

RUA DO TRIUNFO, 134

Por Inácio Araujo*

Uma vez, um universitário que conversava comigo para fazer um trabalho escolar disse que eu caracterizara o cinema paulista dos anos 70 como uma espécie de submundo. "Isso é o que você quis ouvir no que eu falei", eu disse. E por que ele iria querer ouvir esse tipo de coisa? Bem, porque essa é a voz corrente.
Talvez a origem dessa associação esteja em chamar o cinema dessa época de cinema da Boca do Lixo. Mas, além de geograficamente exata, a denominação cai como uma luva para um cinema desprezado pelas classes letradas.
Naquele tempo, havia uma clara divisão: o cinema da Boca do Lixo (paulista, mas extensivo a filmes e cineastas cariocas) e o da Embrafilme (cujos cineastas eram freqüentemente acusados de estarem associados ao regime militar).
A produção da Boca do Lixo era mais popular e diversificada. Além dos filmes voltados exclusivamente ao sexo, havia os filmes de terror, os sertanejos, os do cangaço, os policiais, os bangue-bangues, as comédias. Dirigida à chamada "classe C", tinha um público similar ao da chanchada e mais receptivo ao filme brasileiro do que a classe média.
Ao contrário do que se possa imaginar, esse público menos privilegiado possuía grande intimidade com o cinema e o compreendia com melhor desenvoltura do que a classe rica. Talvez porque, menos ligados às letras, não exigissem dos filmes as virtudes literárias que as elites gostavam de apreciar; sabiam distinguir muito bem o que tinha ou não valor e originalidade. É importante lembrar que esses filmes eram feitos por pessoas com cultura similar à daquelas que os assistiam: eram realizados por artesãos também pouco letrados, que haviam aprendido a profissão trabalhando como técnicos.
Disse acima que a produção da Boca do Lixo não era exclusivamente de sexo, mas a verdade é que com o tempo a sexualidade tornou-se o assunto principal dos filmes, embora os outros gêneros continuassem a ser produzidos. Havia quem julgasse essa importância como uma espécie de conspiração armada pela ditadura: dava-se o sexo e proibia-se a política. Hoje vemos que a ascensão do sexo parece estar mais ligada à intensa transformação cultural que vivíamos nos anos 60.
Também é verdade que a produção erótica da Boca era chamada de machista - com freqüência pelos próprios machistas de carteirinha. E era mesmo: saindo das brumas medievais com que se tratava a sexualidade num país católico como o Brasil era difícil acreditar que fôssemos partir direto para a igualdade de sexos.
O que quero dizer é que, por interesses escusos ou por desinteresse, essa produção raramente foi vista pelo viés cinematográfico. Suas virtudes e limites ficaram soterrados pelos preconceitos que atingem, nesta ordem, toda produção popular feita no Brasil e tudo o que diz respeito à sexualidade. Se, a partir de 1964, aparecer pelada na Playboy já era sinônimo de prestígio, por que então as atrizes que fizeram aqueles filmes foram quase sempre estigmatizadas e desvalorizadas?
É bom ter em mente essas questões antes de tratarmos da obra de Antonio Polo Galante. Quando o conheci, em 1970, a Servicine ficava no pequeno prédio de número 134 na rua do Triunfo, o que, de certo modo, particularizava a produtora que era também de Alfredo Palácios. A maior parte das empresas - como a Cinedistri, de Oswaldo Massaini, e a Columbia -, estava no grande edifício de número 150.
No 134, depois de atravessar um pequeno corredor já estávamos na Servicine. Em mais de um sentido era uma empresa tremendamente aberta, e isso talvez fosse um dos motivos que faziam dela um ponto de encontro de cineastas, jovens ou velhos. Qualquer um podia chegar com seu projeto, que pelo menos seria acolhido.
Galante se ocupava basicamente da linha de frente da produção, enquanto Palácios fazia o trabalho de base (político, inclusive), de maneira que nós, técnicos, tínhamos mais contato com Galante, apesar de sua fama nem sempre ser boa. Não faltava quem reclamasse, muitas vezes com razão, dos baixos salários; mas também é verdade que um técnico apreciado teria trabalho constante.
A diversidade da produção era imensa: variavam os gêneros e também a qualidade dos filmes. O critério de seleção era a chance de dar certo na bilheteria, embora houvesse exceções como, por exemplo, a co-produção A selva, de Márcio Souza, em que a Servicine não botava fé.
Existiam outros produtores interessantes na Boca. Ao lado do número 134 ficava a empresa de Renato Grecchi, que foi, talvez até mais do que a Servicine, a produtora por excelência dos chamados "marginais", embora tenha ido à falência. Havia também Augusto Cervantes, que trabalhava com Mojica e participara dos dois primeiros filmes de Candeias. E, claro, Oswaldo Massaini, que ganhara uma Palma de Ouro e, ao contrário de Galante e Palácios, vivia a razoável distância, com sua própria equipe, elenco e modo de agir. Massaini interferia bastante nos filmes realizados; eles eram, antes de tudo, "filmes Cinedistri" e ostentavam um padrão de produção bem superior ao dos demais, mesmo que o resultado final não fosse tão superior assim.
A interferência de Massaini na produção era bastante perceptível, problema que os filmes de Galante nunca tiveram, na Servicine ou depois dela. Galante trabalhou com diversos cineastas: de Osvaldo de Oliveira - o artesão-padrão da Servicine - a Francisco Ramalho, de Walter Hugo Khouri a Roberto Mauro, de Antonio Meliande a Carlos Reichenbach. Trabalhava tanto com pessoas de origem pobre, formadas no artesanato cinematográfico, quanto com os rapazes da classe média, em geral mais instruídos. E isso mesmo após o divórcio de Palácios e o fim da Sevicie.
Helena Ignez a Angela Carne e Osso exibindo o cartaz do filme A Mulher de Todos de Rogério Sganzerla
Não sei se é o caso de afastar a imagem de submundo que se tem da Boca. De certa forma era mesmo um mundo à parte, por onde circularam Rogério Sganzerla, João Callegaro, Ozualdo R. Candeias, José Mojica Marins, Carlos Reichenbach, Roberto Santos, Rubem Biáfora e Walter Hugo Khouri, para ficar apenas nos mais conhecidos. O ponto de encontro era o bar Soberano. Os técnicos apareciam por lá religiosamente depois das filmagens, e ali eram convidados a participar das próximas produções.
Galante & Palácios produziriam muita gente. Tinham agilidade, entravam em filmes em conclusão. Lembro-me de um médico que começou a fazer um filme sobre um processo de raio X que ele teria desenvolvido. Queria recuperar o dinheiro perdido. Depois que bateu na Servicine, o filme virou um híbrido: em parte científico e em parte ficcional, a história de um sujeito que usava o raio X para ver mulheres peladas.
Galante costumava dar muita liberdade a seus diretores. Exigia apenas que trabalhassem com rapidez e dentro do orçamento e, claro, que respeitassem as leis do gênero. De todos os produtores que conheci, é um dos raros que tinha "olho": sabia dizer se o filme era bom ou não apenas examinando os copiões.
A parceria com Reichenbach também foi bem-sucedida. Galante não se incomodava em nada com aqueles filmes que julgava meio incompreensíveis. O público gostava, eram bem filmados e Carlão não estourava o prazo nem o orçamento. Em contrapartida, Galante não se intrometia na filmagem - condição indispensável para fazer filmes com Carlão.
Raras pessoas tinham uma reputação de esperteza tão grande quanto a de Galante. Ele começou como eletricista na Maristela (ou Vera Cruz?) e logo ganhou fama de nunca ter feito um mau negócio. Mas houve um, sim. Quando ele e Palácios fundaram a Servicine, este se dispôs a entrar com a série O vigilante rodoviário, que produzira para a TV no começo dos anos 60. Em troca, Galante deveria entrar com a Trilogia do terror. Mas, como a Trilogia era um filme novo, em que Galante apostava, ele resolveu não topar. No entanto, até meados dos anos 70, as cópias do Vigilante circulava intensamente pelo interior, com ótimas bilheterias.
Galante também era especialmente dotado para boas idéias. Quando montou um estúdio em Santana, todo mundo achou que ele estava ficando louco: para que serviria um estúdio àquela altura dos acontecimentos? Intuitivo ou não, logo depois a Rede Globo iniciou sua produção na cidade e alugou e equipou o estúdio de Santana.
Outro caso que mostra seu tino foi quando realizou As safadas. Se não me engano, era início de 1982 e havia uma forte inflação. Quanto mais demorasse para fazer o filme, maior seriam os custos. Ora, como produzia basicamente com dinheiro dos co-produtores (circuitos de exibição) e como esse dinheiro não se multiplicava, havia que concluir o filme o mais rápido possível. Foi aí que teve a idéia de dividi-lo em três episódios, para serem filmados simultaneamente com equipes diferentes. Resultado: em 28 dias o filme estava pronto - do início da produção até a primeira cópia.
Com a chegada do pornô, Galante sumiu do mapa, como aliás, um monte de gente. Voltou anos depois com um ambicioso plano de produzir três ou quatro filmes e, acredito, excesso de confiança em si mesmo. Antes de levar o plano adiante, embarcou numa aventura estranha, Cinderela baiana, que lhe rendeu um prejuízo imenso e anos de enormes dores.
Agora novamente temos acesso à produção da Boca do Lixo. Num país em que se vive dizendo que não existem produtores, é interessante notar como a obra de um Galante (e também de um Cervantes, por exemplo) passa por nossos olhos sem que eles retenham de tudo, senão os próprios preconceitos.

* Trecho extraído do Catálogo "O Cinema da Boca do Lixo: A Produção de A. P. Galante" da mostra realizada pela Heco Produções em parceria com o CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil.

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