quarta-feira, dezembro 30, 2015

O ESTRANHO MUNDO DE DANIEL CLOWES

Por Adriana Terra*

Vivendo sua fase de maior reconhecimento, o quadrinista norte-americano tem duas HQs sendo transformadas em filme e ganhou uma mostra e um livro compilando seus trabalhos.

Havia pouca gente no Oakland Museum of California, na cidadezinha vizinha a San Francisco, EUA, na manhã de uma sexta-feira ensolarada em meados do ano passado. Na sala que abrigava a exposição e Art of Daniel Clowes: Modern Cartoonist, dedicada ao quadrinista Daniel Clowes, uma garota que parece sósia da mais famosa personagem do autor, a Enid de Ghost World, tira fotos secretamente com o celular, enquanto uma mãe, na faixa dos 35 anos, deixa a filha de cerca de 3 na porta da sala advertindo-a: “Querida, fique aqui. São quadrinhos, mas muitas vezes são muito tristes”.
A cena parece saída de um dos trabalhos de Clowes. Criador de tipos a aflitos, personagens que tentam se relacionar em um universo solitário, o quadrinista norte-americano vive aos 51 anos sua fase de maior reconhecimento. Seu trabalho está em capas da revista The New Yorker, ganhará em breve sua terceira adaptação para o cinema em um longa-metragem e foi reunido, além da mostra mencionada acima, em livro homônimo. Nesta conversa, porém, o autor logo adianta que a ideia dessas compilações “seguramente” não foi dele.
Formado em artes em Nova York na década de 1980, Clowes trouxe das aulas no Pratt Institute do Brooklyn as caricaturas do universo artístico que circulam por Ghost World e Art School Confidential, tramas saídas da série que o projetou, Eightball, e que viraram filmes – um deles responsável pela indicação do autor ao Oscar de roteiro. Foi de Eightball que saiu também Like a Velvet Glove Cast in Iron, HQ lançada por aqui em 2002, cujo ponto de partida é a lenda dos “snuff movies”, filmes com assassinatos reais. A graphic novel rendeu a Clowes comparações com Twin Peaks, de David Lynch.
Sua publicação mais recente no Brasil é Wilson, trama sobre um homem reclamão de meia-idade. É essa trama que ganhará versão para o cinema em breve, com direção de Alexander Payne. Há ainda outro longa a caminho que adapta o trabalho do autor: The Death-Ray, sobre um garoto que ganha superpoderes ao fumar um cigarro.
Daniel Clowes - Autorretrato

Adriana Terra: Wilson e The Death-Ray estão sendo transformados em filmes no momento. Qual é a sua participação nestes longas?
Daniel Clowes: Escrevi os roteiros de ambos os filmes e só espero que em algum momento eles sejam feitos. Lá atrás, quando fiz Ghost World [2000/2001], era bem mais fácil conseguir dinheiro para um filme independente, bem mais simples que agora. Felizmente, eu não sou um produtor, então, não tenho que lidar muito com esse aspecto do negócio.
AT: E como surgiu a ideia da compilação e da mostra retrospectiva feita ano passado?
DC: Tudo começou em 2007, quando fui apresentado à curadora Susan Miller, que queria fazer uma exposição do meu trabalho, e ao Alvin Buenaventura, que queria fazer uma espécie de monografia. Então, pensei: por que não fazer as duas coisas juntas? E achei que não daria muito trabalho para mim, mas na verdade consumiu muito tempo, incrivelmente.
AT: Trabalhando com quadrinhos há mais de 25 anos, como você nota as diferenças nesta indústria – artistas, editores e leitores – em relação a quando começou a produzir?
DC: Quando comecei, meus únicos leitores eram de um séquito especialmente aventureiro de fãs de quadrinhos que, vez ou outra, comprava uma HQ que não era de super-herói. Meus desenhos geralmente ficavam parados em uma caixa marcada como “adulta” no fundo da loja, e eram totalmente desconhecidos e indisponíveis para o público em geral. Hoje, um grupo aventureiro de pessoas que lê livros de verdade compra estes quadrinhos, o que é uma grande evolução.
AT: Aliás, você já falou que, quando estava na faculdade de artes, as pessoas não davam a mínima para quadrinhos. Foi essa sua experiência que direcionou trabalhos como Ghost World e Art School Confidential?
DC: Sim, tudo aquilo é precisamente a minha experiência. Alguns dos diálogos nos dois filmes são praticamente transcrições verbais de coisas que foram ditas em sala de aula. [Em Ghost World, a protagonista tem problemas nas aulas de arte, enquanto Art School Confidential é ambientado em uma faculdade de artes na qual as avaliações do que é – ou não – uma obra permeiam a trama de forma irônica].
AT: Você costuma dizer que prefere personagens que não se encaixem no mundo, pois são melhores para criar uma história. Esse tipo surge fácil para você?
DC: A maçã não cai longe da árvore, como diz o ditado, e acho que as personagens que me interessam, na maioria, são aquelas que compartilham das mesmas aflições que eu. É difícil me importar de verdade com uma personagem que não se estressa, é feliz, tem uma vida saudável.
AT: Mas, na prática, o que é um combustível na construção das suas personagens?
DC: Podem ser muitas coisas diferentes. Algumas vezes, uma personagem surge do nada na página e começa a conversar com você. Outras vezes, ela é o resultado da vontade de escrever sobre determinado tipo de situação, ou de querer expressar um sentimento específico.
AT: O letramento no seu trabalho é supercuidadoso. Como funciona seu processo com a tipografia, as fontes dos títulos, dos balões...?
DC: Considero que o letramento é tão importante quanto o próprio desenho. As letras feitas à mão em um diálogo podem expressar algo que, para um escritor ou para um cineasta, seria impossível [devido às ferramentas de que dispõem]. Sinto-me praticamente doente fisicamente quando leio quadrinhos que usam fontes de computador.
AT: E o que você está lendo ou assistindo no momento?
DC: Estou assistindo a um monte de filmes do Lee Marvin.

* Matéria extraída da "Revista da Cultura", edição 67, fevereiro de 2013, publicada pela Livraria Cultura (disponível digitalmente aqui).

quinta-feira, setembro 17, 2015

ISMAIL XAVIER: O VIDEOCLIPE

Entrevista por Eugênio Puppo e Arthur Autran*

O clipe era uma espécie de material de divulgação para vender um disco. A Tower Records tinha lá um monitor, o cara entrava na loja e assistia ao clipe. Era uma forma de fazer publicidade. Claro que depois o clipe foi ganhando autonomia e virando um gênero artístico como outro qualquer. Mas ele tem essa presença da música, que é um parâmetro, uma música que dura um certo tanto, que tem tal e tal característica e você vai montar um universo visual que tenha a ver com aquela música e com os intérpretes. O interessante do clipe é justamente esse parâmetro claro: um solo a partir do qual você vai trabalhar, a música. Por isso a possibilidade de invenção é muito grande, porque tudo que você fizer é recuperado pela presença da música. Você pode trabalhar com um imaginário totalmente heterogêneo, com os planos mais inusitados, com os ritmos mais inusitados e mutáveis, com mudanças de textura, pode fazer o que quiser porque tem a música como âncora. Ao assistir a um clipe, você ainda pode esquecer a âncora e ficar mais sensível a essa montagem presente na originalidade visual - e isso pode inspirar muita gente, como de fato está.
Radiohead - Street Spirit (Jonathan Glazer)
Claro que é um avanço, é uma ampliação de repertório, isso expande o repertório da cultura visual e com consequências claras para todos os outros gêneros. Uma das coisas que o clipe nos ensina é a força com que a âncora musical, no cinema, ajuda a própria aceitabilidade de determinadas relações visuais. A gente vê o quanto a nossa conexão com as imagens muda num filme silencioso, visto com ou sem acompanhamento musical; o quanto a música ajuda a dar receptividade às imagens.

Trecho extraído do Livro/Catálogo "A Montagem no Cinema" da mostra realizada pela Heco Produções em parceria com o CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil.

sábado, março 07, 2015

ALTMAN ON ALTMAN

Prefácio por Paul Thomas Anderson (Nov/2005)*
Parece caseiro e feito a mão. Centenas já tentaram ser Robert Altman - ou Altmanescos - mas lhes falta um certo ingrediente: não são ele. Não existe ninguém como ele. Ele pode ser imitado e pode influenciar, mas é impossível de ser alcançado ou capturado - é imprevisível e o rio que segue é só dele. É obstinado e generoso, petulante e reconfortante, e tem o melhor sorriso que um diretor de cinema pode ter. Um homem de Kansas City que lutou em guerras, tatuou cachorros, escreveu músicas e socou produtores.
Não se pode chamar muitos diretores de artista. Mas Bob é. Diretores podem ser um grupo malévolo e intragável, mas quando surge o nome de Bob - todos param e mudam o tom. Todos respeitam o Bob. Todos se curvam em reverência.
Assistindo a seus filmes como um fã e depois como um observador em seus sets, constato uma verdade: é impossível saber onde a conversa termina e a cena começa. Tudo parece um ensaio geral antes que se tenha tempo de pensar duas vezes ou reconsiderar, ele já segue adiante. Se algo já foi dito, por que falar de novo? Como ele mesmo gosta de dizer, “Vamos ao verbo”.
Assisti o Bob rodando uma cena com um grande sorriso no rosto - e à medida que a cena se desenrolava, os atores se distanciavam mais e mais do roteiro e só melhorava, até que ele disse, “Assim é que é. Boa desintegração”.
E se Robert Altman tivesse que preencher um formulário e listar seu currículo? Seria engraçado. Provavelmente pareceria falso. Como uma pessoa pode ser responsável por tantos filmes bons? Ou melhor, como uma pessoa pode ser responsável por tantos filmes verdadeiramente incríveis? O trabalho e tudo que o envolva é puro alimento para ele. Uma vez lhe contei que estava indo de férias para o Havaí e ele me olhou como se eu fosse louco. Perguntei por que me olhava daquele jeito e ele disse, “Nunca poderia fazer isso. É longe demais da ação”.
Roubei do Bob da melhor forma que pude. Quando realmente comecei a digerir filmes como algo que pudesse fazer, os trabalhos que mais tinham a ver comigo, eram os dele. Seus filmes e o homem que ele é imprimiram uma marca suave em minha mente, que estimo.
A partir do trabalho dele, comecei a perceber que não precisava de nenhuma das coisas que havia aprendido no livro de como fazer filmes, Não eram necessárias lições ou moral à história; as coisas poderiam simplesmente acontecer e as histórias poderiam divagar e serem mais efetivas em breves momentos de verdade em vez de em conclusões finais. Poderiam ser longas, poderiam ser musicais sem pessoas cantando, poderiam ser sujas e inteligentes ao mesmo tempo. Começos, meios e fins poderiam flutuar delicadamente juntos em qualquer ordem, e para isso nem era necessário que fosse um grande filmes. As coisas poderiam acontecer sem muita explicação ou fanfarra, que os resultados aconteceriam por si só. Essa é a grande contribuição de Bob: não é necessário explicá-la. Se tudo já está ali exposto e o espectador quiser aproveitar, é só fazê-lo. E somos espectadores sortidos. Bob deixa sua mente livre e nos permite desfrutá-la. Ele é legal conosco, pois é fiel aos seus instintos. É difícil achar heróicos filmes de Bob. A maioria de seus personagens são apenas pessoas tentando seguir em frente sem muitas ambições. Os filmes de Bob me ensinaram a acreditar que a coisa mais interessante - ou a única coisa interessante num filme - são as pessoas.
As muitas vidas de Robert Altman
Seus filmes foram os primeiros, a que assisti, despidos de preciosismo. Era possível sentir que as mãos que os tinham feito não eram lá muito delicadas. Bob sempre só precisou de um pouco de celulóide e de algum som para iniciar a ação e colocar os atores em seus caminhos - porque é aí que está o verbo. Então era aceitável ser rude, não havia necessidade de polir e admirar, pois isso seria tolo e obstruiria o caminho da diversão que é fazer filmes.
Sinto-me honrado de estar do lado de Bob de tempos em tempos. Fico sempre atento aos novos rumos que seu trabalho toma. Todos nós. Aquele antigo ditado “Não há nada que já não tenha sido feito antes” é verdadeiro - contanto que estejamos de acordo que Bob o fez primeiro.

Prefácio extraído do Livro/Catálogo "As muitas vidas de Robert Altman" da mostra realizada pelo CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil.